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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O caso wikileaks


Félix: Brasil tem que se acostumar "com sacos de corpos" voltando da guerra.

A frase acima foi proferida pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, para explicar que o Brasil tem que "pagar um preço" se quer ser uma liderança mundial. Segundo o relato do embaixador Clifford Sobel, a conversa se deu em janeiro de 2007, como ele detalhou em um telegrama enviado ao Departamento de Estado às 16:40 do dia 15 de fevereiro de 2007, que será publicado hoje (15) pelo WikiLeaks.O telegrama secreto descreve um jantar oferecido pelo embaixador a Félix e ao Subchefe-Executivo do GSI, o General-de-Divisão Rubem Peixoto Alexandre.

Na pauta, o pedido da diplomacia para que Félix intermediasse um encontro entre a ministra-chefe da Casa Civil Dilma Rousseff e o advogado-geral americano - além da perspectiva do Brasil colaborar com a Otan, aliança militar que inclui países da Europa e os Estados Unidos. Preço a pagar"Félix estava relaxado e falando francamente, enquanto Alexandre permaneceu em silêncio durante a maior parte da noite", descreveu Sobel. Ele perguntou sobre os benefícios do Brasil colaborar militarmente com a Otan."Felix pareceu circunspecto e disse que os brasileiros devem encarar o fato de que 'um preço deve ser pago' para obter um papel de liderança global.

O Brasil deve estar disposto a modernizar e empregar suas forças em operações internacionais e confrontar a perspectiva de 'sacos de corpos' retornando ao Brasil. Félix disse que, tanto pessoalmente quanto como militar, ele acreditava que era chegada a hora do Brasil pagar o preço e assumir a posição de liderança no cenário global", narra o telegrama. O general diz ainda, segundo o documento, que uma cooperação próxima com a Otan seria vista positivamente pelos militares brasileiros, que compartilham a sua visão.Venezuela Durante o jantar o general também voltou a falar do seu desafeto Hugo Chávez.

Disse que o venezuelano tinha pouca influência no Brasil, recebendo sempre críticas negativas da imprensa, e que "enquanto os governos vizinhos forem democraticamente eleitos, o Brasil tentará ser compreensivo quanto às suas idiossincrasias políticas particulares".Felix, interlocutor frequente da embaixada, já tinha deixado clara suas diferenças com o governo em relação à Venezuela durante um almoço na residência do embaixador em 2005 - mas disse preferir se manter alinhado com a posição oficial.Ele também reclamou da designação da Região da Tríplice Fronteira como alvo do Hezbollah. Desde 2006 o governo americano menciona possíveis atividades terroristas na tríplice fronteira com o Paraguai e a Argentina em seu relatório anual.

Fonte: WikiLeaks

Somos todos bandeirantes!


Na Revolução de 1932, todo paulista foi identificado com os antigos desbravadores. Sua missão: provar a superioridade do estado e salvar o Brasil.

A figura do bandeirante paira como uma entidade sobre São Paulo: está nos monumentos, nos nomes de ruas e logradouros públicos, nas escolas, clubes e estabelecimentos comerciais. A Rodovia dos Bandeirantes une a capital a pontos do interior. A Raposo Tavares (tal como seu homenageado) leva ainda em direção às missões do Tape e Itatim, enquanto a Fernão Dias serpenteia como que à procura das minas de esmeralda e das montanhas das Gerais. Atravessa-se o poluído Tietê pela Ponte das Bandeiras.
Do modernista Monumento às Bandeiras no Ibirapuera, de Vítor Brecheret, à kitsch estátua de Borba Gato, na antiga Estrada de Santo Amaro, não lhes faltam louvações. As homenagens começaram ainda no século XVIII, quando cronistas como Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques de Almeida Paes Leme enalteceram a figura do bandeirante e suas conquistas heróicas. O crescimento econômico da província viria na segunda metade do século XIX, com a expansão da produção cafeeira.

Mas essa transformação não provocou mudanças na esfera política. A elite paulista continuava à margem do poder decisório, centrado na capital do Império, o Rio de Janeiro. Por isso, ela aderiu ativamente ao movimento republicano, defendendo mais autonomia para os estados. As camadas dirigentes paulistas recorriam à história para justificar seu direito a uma maior participação política. Para eles, desde o início da colonização os habitantes de Piratininga tinham sido responsáveis pela ampliação do território nacional, enriquecendo a metrópole com o ouro que encontraram em regiões distantes do litoral e levando a civilização para os mais longínquos rincões da América, transformados por eles em possessão portuguesa.

Graças à integração territorial que promoveram, os bandeirantes eram tidos como fundadores da unidade nacional. Representavam, por um lado, a lealdade ao estado de São Paulo. Por outro, a lealdade ao Brasil.O advento da República (1889) também não trouxe para São Paulo o poder que suas lideranças desejavam conquistar. E elas continuaram investindo na valorização de seu passado. Historiadores do século XX, como Afonso d’ Escragnolle Taunay, Alfredo Ellis Jr. e Alcântara Machado, dedicaram-se a realçar diferentes aspectos das bandeiras. Taunay seguiu o roteiro das expedições pelo território, Ellis Jr. apontou o surgimento de um povo superior (a raça Planaltina) e Alcântara Machado estudou as condições econômicas e sociais do século XVI.

Mas a oportunidade para o bandeirante emergir como verdadeiro símbolo capaz de solucionar os conflitos que desafiavam a nação surgiu na crise da virada dos anos 1930. O movimento militar de 1930, liderado por Minas e Rio Grande do Sul, derrubou o presidente Washington Luis, representante da oligarquia paulista, e alçou ao poder Getúlio Vargas. Contrariados, grupos políticos de São Paulo formaram a Frente Única, apelando para a luta armada pela volta ao regime constitucionalista. Em 9 de julho de 1932, lançaram-se em combates para a derrubada do governo Vargas.

Para convencer a sociedade de que desafiava a ditadura em nome da unidade nacional, nada melhor do que resgatar o velho mito. Os bandeirantes voltam ao centro dos discursos políticos. Com suas virtudes já consolidadas — coragem, audácia, honradez e rigor moral — um símbolo capaz de congregar o povo paulista. No recrutamento dos cidadãos para pegar em armas, convinha omitir a divisão de classes e os interesses de grupos. Uma causa maior se levantava, e ela tinha o irresistível apelo de um herói histórico.Na Faculdade de Direito, os alto-falantes convocavam para o combate, bradando: “São Paulo de Borba Gato, São Paulo de Anhanguera...”. Generalizações eram bem-vindas na chamada à luta: Nação, Nacionalidade, Civilização, Liberdade, Tradições Paulistas.

Durante o movimento, foi cunhada a expressão “paulista de quatrocentos anos”, pela qual as famílias mais antigas cultuavam sua ancestralidade e acreditavam pertencer a uma raça privilegiada. Mas para a guerra era preciso estender o privilégio aos imigrantes, negros e índios. Afinal, dos 7 milhões de habitantes que então povoavam São Paulo, menos da metade podia se orgulhar de descender dos colonizadores. A partir daquele momento, por paulista não se entendia mais somente o indivíduo nascido e criado no estado, mas todo aquele que para lá se transferiu, que se fixou em suas terras, que lá vivia e trabalhava.

Bandeirantes eram todos os que dispunham a lutar pelo estado e pelo Brasil, todos os que pudessem contribuir para a vitória. Era preciso tirar o país da ilusão ditatorial e fazer com que a nação brasileira trilhasse novamente os caminhos da democracia. A mesma alma altiva de Piratininga depositava ante o Brasil seu ouro, seu heroísmo e o sangue dos seus filhos. O hino “Ser Paulista”, de autoria do sargento B. João Pedroso, foi um dos muitos compostos durante a guerra: “Para frente Paulistas/ valorosos Bandeirantes/ Que dos tempos passados/ Têm conquistas/ E feitos brilhantes”.

O paulista em 1932 era como o sertanista do século XVII, que enriqueceu a monarquia portuguesa. Agora, ele doava seu “ouro para o bem de São Paulo”. Era o que afirmava o “Jornal das Trincheiras”, fartamente distribuído nas áreas de combate e no Rio de Janeiro. Ao narrar a epopéia de um célebre bandeirante, no artigo “Estirpe do Anhangüera”, o jornal declara que a “chama da civilização” agora era levada adiante pelo soldado constitucionalista.Um dos exemplos mais expressivos dessa campanha está no expediente do jornal “O Separatista”, apresentado assim: "Diretor: Fernão Dias Paes Leme. Redator Chefe: Antônio Raposo Tavares. Secretário Geral: Cap. Luís Pedroso de Barros”.

A Revolução de 1932 também não dispensou a força das imagens. Bandeirantes ilustravam toda uma sorte de papéis avulsos, volantes, cartazes, cartões e até partituras musicais que convocavam à luta. Ora apareciam empunhando a bandeira de São Paulo, ora acenando aos jovens, ora segurando a caricatura de Getúlio Vargas, como a esmagá-lo. O olhar firme e o porte sereno refletiam a bravura do sertanista, sempre vestido com os trajes com os quais os artistas da época o tinham representado: botas de cano alto, gibão, colete e, infalivelmente, o chapelão de abas largas que emoldurava um rosto barbado e de cabelos longos.

No poema “Minha terra, minha pobre terra”, Ibrahim Nobre, um dos mais conhecidos tribunos da Revolução, expressa com clareza a imagem que os paulistas tinham de si mesmos, desde que os primórdios da colonização:Terra Paulista! Da tua carne massapé e honesta, do teu ventre de mãe fecundo e são, veio a alma que realizou a nacionalidade, imprimindo-lhe o sentido da Independência e os rumos católicos da civilização. De ti proveio o Homem que confrontou a natureza peito a peito e que a venceu e a dominou a facão e a fé!A guerra culminou com a derrota paulista, em 28 de setembro de 1932.

Mas o mito não morreu. O imaginário do bandeirante torna heróico o cotidiano duro do homem de São Paulo e constrói uma identidade ao mesmo tempo coletiva e individual. O paulista se alimenta dessa mitologia para elaborar sua própria imagem, criando uma alegoria de igualdade, se não física, pelo menos moral, que acaba disfarçando os conflitos de classe. Em São Paulo, todos são herdeiros dos desbravadores do sertão.

Katia Maria Abud é professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e autora da tese O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um símbolo paulista: o bandeirante (FFLCH-USP, 1986)

Saiba Mais - Bibliografia:BORGES, Vavy Pacheco. Memória Paulista. São Paulo, Edusp, 1997.

PAULA, Jeziel De. 1932 Imagens Construindo a História. Campinas, Editora da UNICAMP/Piracicaba, Editora da Unimep, 1998.


QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Ufanismo paulista: vicissitudes de um imaginário. Revista USP, 13: p. 79-87; mar-abr-mai 1992.

Elixir do mundo moderno


Fruto exótico em sua origem africana, o café se tornou um produto cobiçado, sinônimo de luxo e elegância

Escrito por: Ana Luiza Martins

“Segure uma xícara exalando o aroma de um bom café e você estará com a História em suas mãos!” Não há exagero neste ditado. Um simples gole dessa bebida estimulante nos leva a uma imensa cadeia de produção, embalada em muita aventura e ousadia, e ao exotismo do Oriente. O conteúdo renovador desta infusão transformou-a na segunda bebida mais consumida no mundo, só perdendo para a água.

Sua trajetória do Oriente para o Ocidente é narrada por meio de histórias fantásticas, disputas ferrenhas, consagrando a bebida como um dos motores da sociedade moderna. O milenar percurso de suas sementes, que atravessaram continentes e mares, faz lembrar o lugar onde tudo começou. A fruta vermelha que nasce da flor branca do pé de café foi descoberta por volta do ano de 525 no interior da Etiópia.

Já a primeira referência alusiva ao uso comestível do café está em manuscritos do Iêmen, de 575, que revelam a Lenda de Kaldi. Reza a lenda que um pastor de cabras da Etiópia observou o efeito excitante que as folhas e os frutos de determinado arbusto produziam em seu rebanho. Os animais que mastigavam a planta subiam as montanhas com agilidade e apresentavam mais resistência. Kaldi experimentou seus frutos, confirmando os dotes estimulantes, e seu consumo se disseminou pela região.

Os etíopes se alimentavam de sua polpa doce, por vezes macerada, ou misturada em banha, para refeição. E produziam um suco que, fermentado, se transformava em bebida alcoólica. As folhas também eram mastigadas ou utilizadas no preparo de chá. A infusão do fruto – quando se mergulha em água fervente uma substância para obter dela outra –, porém, ocorreria mais tarde, a partir do ano 1000, com as cerejas fervidas em água, para fins medicinais. Mas a bebida só adquiriu forma e gosto como a conhecemos hoje no século XIV, com a torrefação. (...)


Arquivos do Futebol


A internet preserva parte importante da memória do futebol brasileiro. Renato Venâncio revela os vídeos e documentos guardados online sobre a grande paixão nacional.

A história do Brasil do século XX, em grande medida, é a história do futebol. O futebol contribuiu para auto-estima de nossa gente, além de possibilitar a ascensão social de milhares de brasileiros pobres. Mais ainda, o esporte bretão gerou a imagem do herói popular e da “pátria de chuteiras” – na expressão de Nelson Rodrigues – como responsabilidade de talentosos afrodescendentes, em uma sociedade que durante séculos foi escravocrata e racista.


Com certeza, porém, nem tudo são flores nos gramados futebolísticos. A maioria dos jogadores, tanto no passado quanto no presente, ganha salários miseráveis. Os que ascendem socialmente, e eventualmente se tornam milionários do dia para noite, são frequentemente extorquidos por uma corte parasitária, formada em grande parte pelas midiáticas marias-chuteiras. Além dessas mazelas, a história brasileira da corrupção administrativa, da exploração e da trapaça, em muito é tributária de expressiva parcela de dirigentes de clubes e de empresários do ramo futebolístico.


Para o bem ou para o mal, não há como negar que o futebol tem muita história para contar. Apesar disso, as ações para se preservar a memória do esporte ainda são raras. O Museu do Futebol desenvolve um trabalho pioneiro. As instituições arquivísticas propriamente ditas, aparentemente, ainda não recolhem arquivos pessoais de jogadores brasileiros. Essa memória documental - constituída por cartas, anotações, fotografias, recortes de jornais etc -, salvo para um ou outro caso, em grande parte foi perdida.


O historiador interessado no tema conta com outros tipos de fontes documentais. A impressa futebolística praticamente nasceu junto ao futebol. O site da “Coleção Linhares” disponibiliza exemplares de jornais bastante antigos, como “O Foot-Ball”, de 1917, ou então a “Gazeta Esportiva”, de 1927 .Através de milhares de páginas de outros periódicos desta coleção é possível conhecer os primeiros passos, ou chutes, de nossos atletas dos gramados.




domingo, 12 de dezembro de 2010

Questão de pele


Coisa de índio, escravo ou marginal, a tatuagem teve que romper fronteiras sociais para conquistar a juventude dourada brasileira

Nenhuma nação desconheceu a tatuagem. Encorajada aqui, proibida acolá, ela independe de geografia, classe ou calendário e é tão antiga quanto a própria humanidade. Nasce e renasce em todos os continentes de modo espontâneo, ao sabor dos grandes deslocamentos humanos, seguindo (e escrevendo) a História de vencedores e de vencidos, dos reis e dos súditos, dos inuits do gelado Ártico aos marinheiros de Santos.

Não se sabe ao certo quando chegou por estas bandas, mas viajantes estrangeiros já se surpreendiam com as marcas pigmentadas na pele dos índios. Em 1512, Henri Estienne, um explorador francês, ficou impressionado com os rostos dos nativos, decorados com cicatrizes azuladas. Algumas iam das orelhas ao queixo. Quando cruzou o Atlântico de volta para casa, levou alguns índios consigo e os exibiu na corte francesa. Hoje se sabe que a prática era amplamente utilizada. Dos mundurucus (Amazonas, Mato Grosso e Pará) aos povos litorâneos, como os tabajaras, nossos índios se tatuavam para denotar sua origem ou marcar momentos de passagens, como a puberdade, e mudanças de status, como a de menino para guerreiro ou a de inimigo para escravo. Eles usavam espinhos e outros instrumentos de corte, como dentes de animais e diamantes. E o principal pigmento vinha do jenipapo. Nada muito sofisticado: em geral, as marcas se restringiam a desenhos geométricos rudes, distantes da intrincada elaboração da tatuagem das Ilhas Marquesas, na Polinésia Francesa, onde os homens eram totalmente “decorados” da cabeça aos pés.

As cicatrizes intencionais dos escravos – também chamadas de escarificação – eram outra marca corporal impressionante para os estrangeiros. “Fazem pôr por enfeite e sinal nas suas faces muitos lanhos, (...) indicativos da família, do Reino, do Presídio e do lugar onde nasceram”, descreveu, em 1793, o português Oliveira Mendes em Memória a respeito dos escravos e tráfico de escravatura entre a Costa d’África e o Brasil. Outro europeu a mencionar as escarificações dos negros escravos foi o historiador francês Ferdinand Denis (1798-1890). Ao circular pela Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, afirmou que era chocante ver os negros seminus na rua, com suas “tatuagens bizarras, que servem de pronto para reconhecer as suas nações”. Denis se referia às cicatrizes intencionais, mas já emprega, em francês, a palavra “tatuagem”.

O termo passou a ser adotado depois que o inglês James Cook conheceu in loco a sofisticada tradição desenvolvida na Polinésia, em fins do século XVIII. Lá, os nativos usavam espinhas de peixe finíssimas, ou ossos de passarinho, para perfurar a pele e injetar um pigmento feito à base de carvão e ferrugem. O navegador registrou o costume em seu diário de bordo: “Homens e mulheres pintam o corpo. Na língua deles, chamam isso de tatau. Injetam pigmento preto sob a pele de tal modo que o traço se torna indelével”. A palavra taitiana era uma onomatopéia do som feito durante a execução da tatuagem. Veio daí a versão em inglês: tattoo.

O nome pegou e a prática se espalhou com os lobos-do-mar ingleses pelos sete mares. No século XIX, a tatuagem tinha virado moda entre marinheiros, operários, prostitutas e criminosos de todo tipo. No Brasil não foi diferente. Com a abertura dos nossos portos, a tatuagem alcançou o submundo. As descrições dessa prática marginal estão presentes em livros de médicos e criminalistas, e em crônicas jornalísticas do século XX. Em “Tatuagem e criminalidade”, tese apresentada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1912, José Ignacio de Carvalho enumerava as tatuagens de presos da Casa de Detenção. Nomes, iniciais e emblemas de amor predominavam nos 994 tatuados que encontrou em um universo de 6.542 detentos. Os tatuados eram padeiros, baleiros, pedreiros, marítimos, cocheiros, domésticos e alfaiates, o que levou o autor à seguinte conclusão: “O indivíduo tatuado pertence, em geral, a uma classe inferior, estranha aos progressos da civilização”.

Essa era a visão corrente. Por conta da chamada antropologia criminal, surgida a partir da segunda metade do século XIX, as conotações pejorativas haviam se cristalizado na Europa católica. Da Itália até Portugal, tatuagem era coisa de cidadão de segunda classe. O mesmo não acontecia nos países protestantes, como Alemanha, Holanda e Inglaterra, onde reis, imperadores e aristocratas também adornavam suas peles. Era a marca do conquistador branco. O pai da moda foi o rei britânico Eduardo VII (1841-1910). Ainda príncipe, tatuou-se nas viagens de instrução, etapa necessária da educação militar do aspirante ao trono. O monarca fez tatuagens em Jerusalém e no Japão, as grandes mecas da prática na virada para o século XX. Depois de Eduardo VII, outros nobres adotaram o costume. Foi o caso de Frederico IX (1899-1972). Fotografias famosas mostram o rei da Dinamarca sem camisa, ostentando orgulhosamente tatuagens marinheiras e de emblemas de seu país.

Não se sabe ao certo se a elite brasileira conheceu o costume ou se teve interesse e meios de adotá-lo. Por aqui a tatuagem permanecia marginal no início do século passado, feita pelos próprios tatuados e por tatuadores amadores – a maioria deles estrangeiros de passagem pelo Brasil na condição de marinheiros. A situação só mudaria com a máquina de tatuar, patenteada pelo inglês Samuel O’ Reilly em 1891, mas que só chegaria deste lado do Atlântico no século seguinte.

O grande pioneiro da tatuagem no Brasil foi um ex-marinheiro dinamarquês estabelecido em Santos. Knud Harld Likke Gregersen (1928-1983), o “Tattoo Lucky”, nasceu em Copenhague e tinha a tatuagem no sangue – seu pai, Jens, era um tatuador de renome internacional. O próprio Knud afirmou várias vezes que sua infância e juventude se passaram no ateliê da família. Depois de anos levando a vida de marinheiro, desembarcou de vez no porto de Santos em 20 de julho de 1959. O Arquivo Nacional ainda conserva sua ficha de registro: ao se apresentar às autoridades, declarou-se desenhista e pintor. Seis meses depois, já estampava jornais e revistas. No dia 7 de janeiro de 1960, foi tema de matéria da Folha de S. Paulo.

A fama nacional de Tattoo Lucky, contudo, só veio nos anos 1970 e se deve a toda uma nova conjuntura. A tatuagem estava em alta nos Estados Unidos, mais especificamente em São Francisco, Califórnia. Lá se tatuaram ícones pop como Janis Joplin, Peter Fonda e Joan Baez, o que criou as condições para a contaminação da juventude consumidora de modas. Foi assim que ela renasceu por aqui. Quem levantou o dinamarquês tatuador foram os surfistas. Jovens praticantes do esporte passaram a viajar para Santos à procura do famoso Tattoo Lucky. Uns queriam dragões e panteras, outros preferiam flores, cogumelos ou pequenos símbolos da onda hippie.

Foram os surfistas os anfitriões da tatuagem no meio da classe média urbana. E a passagem da marginalidade para a consagração se deu em grande estilo: na voz de Caetano Veloso. Em 1979, o baiano cantava logo na primeira estrofe: “Menino do Rio/ Calor que provoca arrepio/ Dragão tatuado no braço/ Calção corpo aberto no espaço/ Coração, de eterno flerte/ Adoro ver-te...”. “Menino do Rio” era uma homenagem ao surfista José Artur Machado, o Petit, cliente de Tattoo Lucky e dono de um enorme dragão no braço esquerdo. Os versos chancelavam a sensualidade da tatuagem. Séculos de marginalidade – dos índios, escravos e pobres – viraram pó com aquela canção. A música foi tema de novela da TV Globo (“Água Viva”, 1980) e batizou um filme, dirigido por Antônio Calmon em 1981, que fez sucesso entre os jovens.

O terreno estava preparado: na onda da contracultura e embalada pelos meios de comunicação, a tatuagem enfim virou moda entre nós. De uma hora para outra, os filhos da ditadura militar quiseram se tornar meninos e meninas do Rio. O mercado nasceu e se expandiu com uma velocidade impressionante. Lojas de tatuagem começaram a ser abertas no Rio, em São Paulo, em Salvador e em outras capitais. Seus donos? Aquela mesma juventude que se encantou com as tatuagens que via ao vivo ou na mídia nas décadas de 1960 e 70. Agora estavam com a máquina e a tinta nas mãos. O resultado está aí, estampado na pele.

Toni Marques é jornalista, editor do programa Fantástico (TV GLOBO), e autor de O Brasil tatuado e outros mundos (Rocco, 1997).

Saiba Mais - Bibliografia:

ARAUJO, LEUSA. Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.

LOPES, Moacir. Maria de cada porto. Rio de Janeiro: Quartet Editora, 2002.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vinte luas – Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.




Batuque apimentado


Cantada em rodas de samba desde 1917, composição de João da Baiana critica as injustiças sofridas por negros nos primeiros anos da República

Batuque na cozinha
Sinhá não quer,
por causa do batuque
eu queimei meu pé

Quem gosta de samba já escutou este refrão de “Batuque na cozinha”, composto por João da Baiana (1887-1974) em 1917, e só gravado em 1968. E provavelmente acompanhou os versos batucando numa mesa ou remexendo as cadeiras. Mas por trás do ritmo contagiante há palavras que dizem mais do que aparentam. Com suas composições, o músico carioca também aproveitava para esboçar críticas ferinas ao regime republicano, naquele momento firmemente empenhado em perseguir a população afro-brasileira.

Seguindo uma estrutura tradicional, a música continha apenas um refrão, em torno do qual se improvisavam novos versos. O tema era lançado na roda e cada um fazia seu comentário ou jogava uma provocação. Por força da tradição, muitos refrões eram transmitidos de geração a geração, atravessando séculos. É bem provável que João da Baiana tenha escutado o tema que inspirou seu batuque em uma das inúmeras festas que frequentou desde criança. (...)

Fonte: Marcos Alvito Historiador.




Vida após a morte


Cemitérios de São Paulo viram pontos turísticos e são registrados em livro.

A terra da garoa tem muitos museus, mas poucos turistas conseguem visitar em um só lugar referências a Tarsila do Amaral, Campos Sales, Monteiro Lobato e marquesa de Santos. Para isso, é preciso deixar o medo de lado. Afinal, não é qualquer um que mantém a calma ao entrar em um cemitério. A partir de 2011, a chance de alguém se perder entre os túmulos será menor. Isso porque será lançado um guia com roteiros pelas principais necrópoles paulistanas.

O livro Cemitérios e lugares da morte em São Paulo propõe passeios a pé, com mapas e setas indicando o percurso. Pode ser lido como um guia de turismo, mas com muito mais referências históricas. Segundo a editora Paula Janovitch, os roteiros relacionam os cemitérios com temas como arte e imigração. Já os “lugares da morte” seriam igrejas antigas, onde eram feitos os enterros até meados do século XIX. O primeiro cemitério público, chamado Consolação, só foi construído em 1858.

Para Eduardo Rezende, presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (Abec) e dono da Editora Necrópolis, o Cemitério Consolação é o mais indicado tanto para se visitar a última morada de personalidades históricas como para apreciar a arte tumular. O mausoléu da família Matarazzo, com 20 metros de altura, é campeão de visitas. Outros eventos, digamos, inusitados aconteceram por ali. “Pagu e Oswald de Andrade se casaram, em 1930, em frente ao túmulo do pai dele”, afirma Rezende.

Perto do Consolação, os cemitérios Araçá e São Paulo completam o circuito turístico básico. No Araçá, segunda necrópole pública da cidade, está enterrada Francisca Júlia (1871-1920), uma das primeiras poetisas do país. A estátua que enfeita hoje o túmulo é uma cópia da original, em mármore carrara, esculpida por Victor Brecheret. A obra foi transferida em 2006 para a Pinacoteca de São Paulo.

Além de Brecheret, outros artistas de sangue italiano se destacaram na arte tumular. Segundo a historiadora Eloína Ribeiro, Eugênio Prati, Galileo Emendabili e Antello Del Debbio chegaram a montar ateliês em frente ao Cemitério São Paulo. Eles se mudaram para a cidade na década de 1920, quando foram construídos os primeiros grandes monumentos funerários. A maioria das obras era feita para imigrantes. “As esculturas geralmente mostram que eles tiveram sucesso no Brasil, tornando-se comerciantes e industriais”, diz a historiadora.

Eloína escreveu um dos roteiros sobre as necrópoles da cidade, mas se limitou ao Cemitério São Paulo. Ali está a maioria das obras feitas por ítalo-brasileiros, sua especialidade. Com ela, Paula e Rezende formam um time crescente de admiradores de “lugares da morte”. Apesar de ainda haver muito preconceito, eles garantem: quem vai a um cemitério sempre acaba voltando depois.





quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

As "coquettes" de Copacabana


No Rio do século XIX, elegância era seguir a moda francesa. Por mais calorenta e desconfortável que fosse. Lastex, náilon, helanca, lycra, jérsei, suplex. Será que as mulheres do calçadão de Ipanema dão o devido valor aos trajes de banho e às roupas esportivas que tanto realçam as curvas do corpo? Mal sabem as “gatinhas” de hoje o quanto suas bisavós sofreram no início do século XIX, usando malhas de lã em plena Praia de Copacabana.
A primeira moda que claramente se impôs no Brasil foi a francesa, a partir da chegada da família Real Portuguesa, em 1808. Os nobres já conheciam as tendências européias e sabiam que, quando o assunto era requinte no vestuário, os franceses estavam sempre um passo à frente. Assim, a nova classe emergente brasileira também deveria “entrar na linha” – o que já então significava comportar-se com civilidade.
E a moda era um indicativo dessa postura.A Rua do Ouvidor, no Centro do Rio de Janeiro, foi a primeira a concentrar lojas francesas. As que não eram legítimas afrancesavam seus nomes: Madame Dupeyrat (coletes), Madame Estoueigt (alta-costura), Madame Coulon (camisaria), Madame Douvizi (chapéus femininos) e Madame Rozenvald (florista).
Ao longo do século XIX, muitos outros profissionais da moda se estabeleceram no “beco de luxo”, como era chamada a rua, o endereço mais chique da cidade, espremida entre o Largo de São Francisco e a Rua do Ourives. Ficavam ainda na Rua do Ouvidor a famosa Notre Dame de Paris, o maior magazine da cidade, a Sapataria do Cadete e a Casa Doll, que vendia camisas masculinas.Os termos e a definição das peças do vestuário também seguiam o vocabulário francês. Incluíam de négligé-chambre e peignoir (trajes femininos para serem usados em casa) a gilet de soirée (o sobretudo dos homens).
Mesmo no alto verão sobre o asfalto da Avenida Central, atual Rio Branco, os cavalheiros não abriam mão do veston (tipo de jaqueta) ou do redingote (casaco cruzado com três botões). Sem falar nas polainas, inspiradas nos sapatos do século XIV.A palavra “maiô” só chegaria mais tarde, nos anos de 1930. Existem duas versões para a sua origem. O termo pode ter vindo de maillol, uma tira de tecido que envolvia as crianças, ou pode ter se inspirado no Senhor Maillot, que no início do século XIX confeccionava malhas inteiriças em lã e seda para facilitar os movimentos dos bailarinos.
A francofilia carioca chegava a tal ponto que a primeira coluna de moda do Jornal do Brasil, publicada em 1896, não foi escrita em português! A colaboradora Marguerite Saint Gene fazia jus ao nome e redigia na língua de Napoleão. Não importava que a temperatura na Rua do Ouvidor fosse oposta à das avenidas européias – as cariocas refinadas não podiam deixar de ler os conselhos da “Causerie parisienne” (“Bate-papo parisiense”). Somente dois anos após sua estréia, a coluna passou a ser escrita em português, ainda que as dicas sobre “o que usar” continuassem importadas. “Vestem saias compridas, amplas, cheias de subsaias, sungadas a mão. Mostram cinturinhas de marimbondo, os traseiros em tufo, ressaltados por coletes de barbatanas de ferro, que descem quase um palmo abaixo do umbigo.
Todas de cabelos longos, enrodilhados no alto da cabeça e sobre os quais se equilibra um chapéu que, para não fugir com o vento, fica preso a um grampo de metal em forma de gládio curto, com um cabozinho enfeitado de madrepérola ou pedras de fantasia. Usam, como fazendas, o surah, o faille, o chamalote, o tafetá e o merino; calçam botinas de cano alto, de abotoar ou presas a cordão, o infalível leque de seda ou gaze na mão, sempre muito bem enluvada”. Era assim que se apresentavam as moças que transitavam pelo Rio, particularmente no Largo da Carioca e na Rua Gonçalves Dias, na minuciosa descrição do jornalista e memorialista Luiz Edmundo (1878-1961).
Mas certas estratégias de embelezamento, hoje comuns, eram evitadas na época. O mesmo cronista parecia assombrado com as donzelas que não usavam pintura nos olhos, nos lábios ou no rosto, receosas de comprometer sua imagem pública. “As mulheres cariocas são figuras de marfim ou cera, visões pálidas evadidas de um cemitério. Quando passam em bandos lembram uma procissão de cadáveres. Diz-se pelas igrejas que é pecado pintar o rosto, que Nossa Senhora não se pintava”.
Essa aparência fantasmagórica era agravada pelo fato de as mulheres brasileiras serem branquíssimas. Evitavam pegar sol para não parecerem pobres trabalhadoras braçais. Quando iam à praia, chegavam nas primeiras horas da manhã e não permaneciam por muito tempo. E ainda usavam o crème brise éxotique – vendido na Éxotique de Paris, mas também encontrado no Centro do Rio.
O emplastro prometia manter a pele alva e aveludada.Em 1886, em uma das quatro vezes que veio ao Brasil, a famosa atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) chocou as cariocas com um estranho hábito: deu um mergulho depois das sete da manhã. Será que os médicos não haviam alertado a diva do teatro mundial que fazia mal se banhar naquele horário e depois ficar sentada na areia, olhando o horizonte, pensativa? Demorou um pouco, mas a ousadia de Bernhardt acabou sendo absorvida pela sociedade.
Em 1917, o decreto 1.143 do prefeito Amaro Cavalcanti (1849-1922) alterou o horário permitido de exposição ao sol. A partir daquela data, ficaram reservados dois períodos na orla de Copacabana: das 5h às 8h e das 17h às 19h, com uma hora adicional nos domingos e feriados.
Com oito artigos, o decreto apontava também a necessidade de “apresentar-se com vestuário apropriado na praia, guardando a necessária decência e compostura”. Além disso, nada de “ruídos e vozerias” na areia e no mar. Punição para os transgressores: multa de 20 mil-réis ou cinco dias de prisão. Charges e desenhos de moda publicados nos jornais daquele início do século XX parecem ainda mais divertidos hoje, graças às legendas que identificam as tendências da moda da época. Como os enormes chapéus, que “faziam vítimas” no teatro.
“Que há agora en scena?”, pergunta um homem tentando enxergar o que acontecia no palco. O amigo, que também não conseguia ver o que se passava, responde: “Um duetto: o tenor deve estar cantando do lado das plumas e a primadonna, do lado das fitas”.Logo abaixo dos chapéus, outro valioso recurso feminino: os penteados. A nova tendência era ser original nesse quesito. Cada mulher inventava sua composição, o que rendia estruturas estranhíssimas, em forma de avenida, palácio, cabana, cumeeira e pagode – não o musical, claro, mas o templo asiático.
Por outro lado, a virada do século trouxe novas formas de abordar os modismos femininos. Começava a surgir certa preocupação com o conforto. As saias ficaram mais amplas, flutuantes, e não mais entravées (justas). Um desenhista de uma das grandes casas de Paris apresentou seus últimos modelos, considerados ousados demais: mulheres vestidas como bailarinas. “Estarão dispostas a submeterem-se a semelhante ridículo?”, perguntava-se.
Desde 1881, o grupo londrino Rational Dress Society (algo como Sociedade das Vestimentas Racionais) vinha defendendo a abolição dos verdadeiros instrumentos de tortura que dominavam a moda daqueles tempos. A começar pelo espartilho, que apertava os seios e a cintura a ponto de provocar mal-estar e até abortos. Também eram condenáveis os saltos altos e o excesso de peso das roupas de baixo, que não deveriam passar de três quilos e meio. Roupas práticas, como as bloomers (calças usadas pelas mulheres turcas), eram ideais para quem quisesse andar de bicicleta com mais conforto e menos risco: antes disso, os vestidos compridos causavam sérios acidentes ciclísticos na orla ainda não asfaltada do Rio.
Em nome da liberdade pregada por aquelas pioneiras, as gerações do século XXI podem respirar. Expandem seus movimentos de maneira harmônica e confortável. E se, uma vez ou outra, as mulheres ainda optam por um modelito de sutiã com ferrinhos ou por um espartilho de couro, sabem que não se trata mais de objetos de tortura, mas de estratégias para valorizar a sensualidade feminina. Esta nunca sai de moda.

Rose Esquenazi é jornalista e professora da Faculdade de Comunicação da PUC-Rio.


Saiba Mais - Bibliografia: CALLAN, Georgina O’Hara. Enciclopédia da moda: de 1840 à década de 90 (Companhia das Letras, 2007).


RAINHO, Maria do Carmo. A cidade e a moda, novas pretensões, novas distinções: Rio de Janeiro, século XIX (UnB, 2002).


SABINO, Marco. Dicionário da Moda (Campus/Elsevier, 2006).


Quem tem boca vai à forca


Tiradentes era um orador incansável: dos prostíbulos às pousadas de beira de estrada, fez da palavra sua grande arma. Que ele arrancava dentes, é fácil de se imaginar. Mas a habilidade de Joaquim José da Silva Xavier que realmente causava arrepios nas autoridades portuguesas era outra: ele falava pelos cotovelos. E falava bem.
Antes de se tornar o “mártir da Independência”, Tiradentes foi um exímio comunicador: persuasivo, incansável e – talvez seu traço mais relevante – sem preconceito de público. Onde houvesse concentração de gente e pontos de encontro propícios à conversa, lá estava ele.
Em 1789, João Rodrigues, dono de uma estalagem em Varginha, no caminho que ligava os centros mineradores ao Rio de Janeiro, foi chamado a prestar depoimento no inquérito sobre a Inconfidência Mineira. Motivo: tempos antes ele hospedara o alferes Silva Xavier. A hospedagem em si não lhe teria causado maiores problemas, se o famigerado falastrão não tivesse começado a expor, de modo exaltado, seu descontentamento político.
O estalajadeiro contou aos juízes uma conversa que tivera com outro hóspede após a passagem de Tiradentes: “Vossa Mercê não sabe que há por cá valentões que se querem levantar com a terra? [...] Era um semiclérigo”. O termo usado pelo depoente não era apenas irônico, mas altamente simbólico. Ao desvendar o lado “semiclérigo” de Tiradentes, ele não só confirma que seu hóspede falava demais (como um padre em pregação), como deixa claro que o hábito de falar em tom de convencimento estava ligado à atuação dos representantes da Igreja.
Tanto a tradição lusitana quanto a história da capitania do ouro comprovam o desempenho de religiosos na fomentação de motins junto à gente miúda, como na Restauração Portuguesa de 1640, quando Portugal se separou da Espanha após 60 anos da União Ibérica, e nos Furores Sertanejos de 1736, uma série de motins deflagrados contra a cobrança do imposto da capitação, no norte de Minas. Nessas ocasiões, os padres foram duplamente importantes: souberam alimentar o debate com discursos de convencimento e ajudaram a transportar as insatisfações populares (geralmente limitadas ao âmbito oral) para o contexto da escrita.
Na sociedade colonial, os relacionamentos eram marcados pela oralidade. A troca de idéias, as polêmicas e as críticas ao governo ocorriam basicamente em conversas, que se tornavam públicas por meio de boatos e murmúrios. Nesses momentos, os religiosos, acostumados ao púlpito, lançavam mão de sua oratória. E Tiradentes, ao agir como um “semiclérigo”, ecoava seu discurso com a mesma eficácia.
Tiradentes trafegava com desenvoltura pelo submundo da Colônia, em ambientes especialmente favoráveis à divulgação de propostas ousadas. Tavernas e prostíbulos eram os locais por excelência para tramas envolvendo fugas de escravos, negociatas ilícitas e ações subversivas. Afinal, ali se reuniam todas as gentes: homens brancos, escravos, libertos, vadios e militares, principalmente os de baixa patente.
No inquérito da Inconfidência Mineira, uma testemunha afirmou ser público que o alferes “andava falando por tavernas e quartéis”. Outra, que ele “pretendia excitar uma sedição e motim nesta capitania, chegando o seu desaforo a andar convidando sócios até pelas tavernas”. Uma terceira, que andara “por casa de várias meretrizes, a prometer prêmios para o futuro, quando se formasse nesta terra uma república”.
Três meretrizes a quem Tiradentes teria feito promessas chegaram a depor no inquérito. Eram mãe e duas filhas, identificadas, preconceituosamente, como “pilatas” – segundo o historiador Tarquínio J. B. de Oliveira, o termo remetia a pia de água benta, “onde todos botam a mão”. As mulheres pediram a Joaquim José que ajudasse um irmão das duas meninas a “sentar praça de soldado na tropa paga”. O conjurado teria lhes respondido que “deixassem estar, que brevemente se lhe assentaria praça, porque ele, dito alferes, estava para ser um grande homem”.
Mas a “pregação” de Tiradentes não se limitou ao submundo. Transitava pelas ruas de Vila Rica (atual Ouro Preto), visitava residências de sujeitos proeminentes e repartições públicas. Freqüentou, especialmente, o primeiro piso da residência de João Rodrigues de Macedo, onde funcionava um cartório. Macedo era um poderoso comerciante e arrecadador de impostos. Por sua casa passava diariamente um grande número de pessoas, por conta de pendências fiscais ou para o acerto de taxas do comércio.
Era a mais imponente construção civil da cidade, um ponto de encontro e comunicação que atraía grandes comerciantes, mineradores e “homens bons” da região. Tudo indica que naquela casa ocorreram encontros secretos entre alguns inconfidentes. Mas muitos tópicos da opinião pública eram também discutidos às claras, sem nenhuma reserva ou sigilo, e por pessoas alheias ao movimento rebelde.
O valor da derrama (cobrança de impostos atrasados relativos à exploração do ouro) circulou de boca em boca por meio dos cálculos de Vicente Vieira da Mota, funcionário do cartório. Grande parte das informações dadas pelo tenente-coronel Basílio de Brito Malheiro, um dos denunciantes da conjuração, foi recolhida no local. E Tiradentes pronunciou ali alguns de seus discursos políticos para quem quisesse ouvir.A complexidade do espaço urbano de Minas era suficientemente grande para criar diferenciações simbólicas entre os lugares de convivência.
Isto fica claro em relação a tavernas e prostíbulos, sobre os quais pairava o estereótipo: seus freqüentadores eram tidos como pessoas de menor qualidade, desregradas ou criminosas. E enquanto a casa do cartório reunia homens poderosos e benquistos pela sociedade, a ponte que a margeia era vista com reserva. Para Basílio de Brito Malheiro, as pessoas que ali conversavam não possuíam boas qualidades, “porque na dita ponte não costumava ajuntar-se gente séria”.
Tiradentes alugava casa próxima aos dois pontos de encontro.Andou também pelos pousos e estradas do Caminho do Rio (ou Caminho Novo). Este trajeto, que ligava as vilas mineiras ao litoral carioca, dois dos principais pólos econômicos da América portuguesa, era a rota terrestre mais transitada da Colônia. Notícias e informações circulavam por seus caminhos, refazendo o amplo circuito de comunicação dos viandantes.
Tão logo soube das desordens em Minas, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa advertiu para o perigo de que, “pela vizinhança e relação contínua de comércio, se possa comunicar [de Minas para o Rio] este tão grande mal”. As palavras de Tiradentes parecem ter sido ali transmitidas e retransmitidas como tentáculos. A impressão que se tem pela leitura do processo contra os inconfidentes é que seria impossível uma só pessoa ter conversado tanto tempo, com tantos interlocutores, em tantos lugares diferentes.
São pousos, fazendas, estalagens, ranchos de abrigo do sol, registros fiscais e muitos outros locais a servir de cenário para as confabulações do alferes. Uma testemunha afirmou ter ouvido dizer que o militar “havia falado a quase todos os moradores da estrada do Rio de Janeiro, como era constante”. Outro contemporâneo soube que Tiradentes, enquanto viajava para a capital da Colônia, “tomou a sua conta ir semeando alguns discursos suasórios [persuasivos] das conveniências deste país”. O alferes comunicava publicamente suas indignações e sua inquietação, “alargando-se e convidando algumas pessoas, a quem persuadia dos seus intentos, e a quem se encaminhavam aqueles discursos”.
Essas práticas motivaram intensos burburinhos. Uma voz pública passou a veicular “as notícias gerais das liberdades e despropósitos que o mencionado alferes viera espalhando desde o Rio de Janeiro – onde tinha residido por largos tempos – por toda a estrada”. A elaboração anônima dos boatos se encarregou de fazer chegar suas mensagens a lugares por onde ele não conseguira passar. Um “ouvir dizer” irrefreável espalhou-se pelos caminhos.Às margens das estradas, as estalagens e pousadas constituíam um meio-termo entre os ambientes rurais e urbanos da Colônia. Viviam da pujança comercial que interligava as regiões do Brasil, abrigando toda sorte de gente. Tropeiros, caixeiros e negociantes constituíam a clientela principal, mas nelas também pernoitavam pessoas alheias ao comércio: funcionários públicos, fazendeiros, mineradores, militares ou simples viandantes.
Pobres e ricos se esbarravam no mesmo estabelecimento, embora o preço da estada e da alimentação fosse sacrificante para os primeiros. Sabe-se que em uma de suas viagens Tiradentes esteve acompanhado de Antônio de Oliveira Lopes, um paupérrimo medidor de terras que não podia pagar sua própria hospedagem. Joaquim José supria as contas do companheiro, bebendo com ele um cálice de vinho ou aguardente e aproveitando a ocasião para praguejar contra a miséria de Minas e a ladroagem dos governadores. Na mesma estalagem hospedava-se ainda um moço do Serro não identificado, miserável e “muito mal tratado, porque conduzia um saco às costas e vinha descalço”.
Na cidade ou na estrada, no submundo ou entre os poderosos, a trajetória de Tiradentes está intimamente ligada à força da oralidade na sociedade colonial. O que nos coloca diante de uma questão atualíssima: ainda hoje uma nação constituída, em grande parte, de analfabetos ou semi-analfabetos, o Brasil continua a ter sua história construída por meio de falas e murmúrios. Para melhor nos enxergarmos como nação, convém apurar os ouvidos.

Tarcísio de Souza Gaspar é professor substituto da Universidade Federal de Viçosa, historiador da Prefeitura Municipal de Ouro Preto e autor da dissertação “Palavras no chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII” (Rio de Janeiro: UFF, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:
FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope – história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
NEVES, Guilherme Pereira das. “Murmuração”. In: Ronaldo Vainfas (dir). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001; p. 416-7.
RAMOS, Donald. “A voz popular e a cultura popular no Brasil do século XVIIII”. In: Maria Beatriz Nizza da Silva (org.) Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, p. 137-155.
SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito: aspectos da história mineira no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2006.


A religião dos bichos


Desde a Idade da Pedra, os animais são vistos como mensageiros de seres divinos.

Não é de hoje que os animais são domesticados. Esta prática começou no período Neolítico, há cerca de 10 mil anos, e fez parte do que os historiadores e arqueólogos costumam chamar de “Revolução Neolítica”, que viu surgir a agricultura e a vida sedentária.
Mas o início da submissão de alguns animais aos homens não estava relacionado a fatores econômicos desse período: alimentação e trabalho. É provável que tenha atendido a fins sobrenaturais. A morte ritualística, comum em várias sociedades pré-históricas, requeria uma quantidade regular de animais, só possível com o seu amansamento.
Antes da domesticação, entretanto, os homens já atribuíam significados sobrenaturais aos bichos. Pinturas rupestres datadas do Paleolítico Superior (entre 300.000 e 10.000 a.C.) na Europa retratam bisões, mamutes e renas com tal perfeição que se pode especular sobre a existência de indivíduos especializados nessa tarefa.
Seus autores possivelmente eram sacerdotes afastados das tarefas de caça e coleta, o que indica a importância dada pela comunidade aos humanos que faziam esses desenhos com fins mágicos. Na região da atual Alemanha, há pouco mais de 10 mil anos, comunidades de caçadores que seguiam manadas de renas sacrificavam o primeiro animal que capturavam em cada temporada, atirando em um lago seu corpo amarrado a uma pedra.
Portanto, matavam animais com objetivos rituais. Várias culturas próximas a nós, modernas ou antigas, enfatizam o caráter sagrado dos não humanos. O cristianismo, dentro da tradição judaica, submete os animais ao homem desde a Criação – Adão, ainda no Éden, deu nome a cada uma das espécies feitas por Deus, sublinhando assim o controle humano sobre as bestas.
O próprio filho do Criador, encarnado para os cristãos em Jesus, vem ao mundo para morrer em uma oblação, como “Cordeiro de Deus”. Aliás, o carneiro, animal domesticado há cerca de 10 mil anos no atual Iraque, tem papel importante nas culturas do Oriente Médio.
Entre as funções atribuídas aos animais, uma das mais persistentes é a de mediação entre o mundo dos vivos e o dos mortos. No Egito Antigo, Anúbis, o deus da morte, era representado por um híbrido de homem e cão.
O touro Ápis, um dos animais mais reverenciados entre os egípcios, era considerado um semideus, vivia em um santuário, onde era bajulado pelos sacerdotes e enfeitado com joias. Quando morria, passava por um processo de mumificação que durava cerca de 70 dias e era acompanhado por uma multidão em prantos até o seu sepultamento. No primeiro milênio a.C., as oferendas de cães, gatos, falcões e outros animais mumificados aos deuses se tornaram muito populares no Egito, como forma de comunicação com o mundo dos mortos. (...)


quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

BATEU LEVOU


Nelson Rodrigues e O Pasquim travaram um duelo ideológico durante a ditadura, mas a luta pela anistia os colocou do mesmo lado do front.

Elio Chaves Flores

Lançado em junho de 1969, no olho do furacão das tensões que varriam o Brasil e o mundo, o tablóide humorístico O Pasquim não poderia ter outro alvo preferencial para suas críticas que não os “brucutus” do governo militar.Bater na ditadura – embora com o evidente cuidado de driblar os censores – era quase uma obrigação.
E não havia do outro lado resposta à altura das ironias inteligentes de jornalistas e chargistas como Sérgio Cabral, Jaguar, Tarso de Castro, Ziraldo e Millôr Fernandes. Foi no front intelectual que eles encontraram um opositor com gabarito para enfrentá-los: o consagrado dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980).
Por seu temperamento genioso, irônico e anticomunista, o genial autor de “Vestido de Noiva” encarnava o representante máximo da execrável direita inteligente. Escolhido como símbolo reacionário, rapidamente entraria na mira do jornal alternativo. E não o deixaria sem resposta.Na verdade, não é possível saber que lado começou a contenda.
Desde o golpe militar de 1964, a tensão entre perseguidores e perseguidos estava presente não somente nos partidos políticos e sindicatos, mas também nos nichos da intelectualidade, especialmente nas universidades e na imprensa. Em 1968, Nelson Rodrigues publica uma sátira cruel à Passeata dos Cem Mil, a maior manifestação da década contra a ditadura militar.
Sob o rótulo de “esquerda festiva”, alfineta as classes médias que contestavam o regime: “Os Cem Mil eram filhos da alta burguesia. E, com efeito, não havia, entre os manifestantes, um preto, um favelado, um torcedor do Flamengo e sequer um desdentado. Os Cem Mil tinham uma saúde dentária de artista de cinema.
Um turista, que por aqui passasse e os visse, havia de perguntar: - Mas a alta burguesia quer tomar o poder que já tem?” Em outra crônica do mesmo ano, perguntaria pelas figuras obrigatórias nas manifestações populares que, segundo ele, não estavam presentes nem nas passeatas nem nas fotografias da revista Manchete: “os negros, o vendedor de laranjas, o batedor de carteira e a mãe plebéia, a santa crioula que tira o seio negro e generoso e dá de mamar ao crioulinho sôfrego”.
Em outubro de 1969, noventa dias depois de criado O Pasquim, o confronto já era aberto. “De vez em quando, vem alguém me dizer: O Pasquim te meteu o pau! Ora, não me considero uma glória oficial”, escreveu Nelson Rodrigues em uma crônica amargamente intitulada “Humoristas Rancorosos”.
Nela, o cronista propõe uma análise histórica sobre o humor nacional. “Sabemos que o brasileiro é o único povo que faz piada. Se não temos um vampiro, estejam certos:  é a piada que torna inviável qualquer Drácula brasileiro. No fundo, no fundo, a piada é um gesto de amor. É ou era. Mas os tempos passam e os usos, costumes, valores, sentimentos vão mudando”.
Ao comparar os humoristas da velha geração com as críticas esquerdistas de seu tempo, conclui, certeiro: “Há muitos anos que não acho graça nos humoristas brasileiros. Mas sempre achei que o defeito era meu. Só agora é que, acidentalmente, lendo O Pasquim, vejo que as coisas mudaram muito. Deixando de lado duas ou três exceções, faz-se, no Brasil, o humorismo do ressentimento”.
De fato, era um desafio preservar a leveza e a eficácia do humor nos anos de chumbo. Com a pauta das edições sempre no campo de lutas das esquerdas ou, pelo menos, com um forte sentimento de oposição à ditadura, os pasquinianos não cansavam de estimular a polêmica entre intelectuais. Suas entrevistas, realizadas ora em botecos, ora na redação, tornaram-se momentos de discussões acirradas sobre desafetos e ex-amigos.
Em maio de 1970, Chico Anísio, um dos astros do humorismo televisivo, respondeu assim quando lhe pediram sua opinião sobre Nelson Rodrigues: “É invejoso em primeiro lugar. (...) Tudo o que ele escreve, as coisas mais dramáticas, eu acho graça. Eu acho ele um tremendo humorista, embora ele pense que é um dramaturgo”.
Dois anos depois, o entrevistado seria o escritor Antonio Callado (1917-1997), autor de um dos romances referenciais sobre a luta armada: Quarup, de 1967. Callado havia sido amigo íntimo de Nelson Rodrigues, que o transformara em personagem de vários de seus escritos nos jornais. A amizade foi sepultada quando Nelson publicou a crônica “Adeus a um amigo socialista”.
No texto, indagava como um intelectual, com “um sorriso bem ensaiado, de uma compassiva ironia”, podia defender o assassinato de inocentes, isto é, que para os guerrilheiros fosse legítimo executar embaixadores. Não foi possível comprovar que Callado realmente tenha dito isso, mas com certeza Nelson generalizou uma idéia dele. Quando os entrevistadores de O Pasquim abordaram o tema, Callado afirmou que, na República, “as idéias são tidas como menos importantes que os amigos”. E emendou, ácido: “Nelson Rodrigues é o grande clássico das Forças Armadas”.
Entre as teses destiladas por Nelson, a que mais irritava Ziraldo, Jaguar e companhia era de que as esquerdas e os socialistas dominavam as redações dos jornais. Como acusações do gênero eram publicadas quase diariamente nas páginas de O Globo, suas crônicas eram vistas como um pedido para que a polícia prendesse jornalistas. Soava como dedurar colegas e profissionais da classe, “uma vocação legítima de pelego jornalístico” e “pau-mandado da direita”, nas palavras de O Pasquim.
As esquerdas também procuravam reduzir seus méritos artísticos, lançando mão de um discurso moralista: o dramaturgo era tachado de polêmico, maldito e tarado. Mas isso era como atirar na água. O próprio Nelson definia-se como um espectador privado e intimista dos costumes e obsessões da sociedade brasileira: “O buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”.
Não escondia de ninguém que adorava uma polêmica, cultivando seus desafetos com todo esmero. Para isso, contava com um espaço privilegiado nas páginas dos principais jornais do Brasil, para os quais escrevia desde os 13 anos de idade. E foi entre 1967 e 1977 que mais se dedicou às crônicas, publicadas em três jornais (Jornal dos Sports, Correio da Manhã, O Globo), além de lançar livros de memórias e confissões.
Em contrapartida, escreveu apenas uma peça no período (“Anti-Nelson Rodrigues”, em 1973). Nas mais de sete mil crônicas que assinou, passava de temas relativamente amenos, como futebol, comportamento e relações amorosas, aos acirrados debates políticos e culturais da época, confrontando sedutoras novidades, como o poder jovem, o comunismo, o feminismo e as passeatas.
A batalha ideológica travada entre os intelectuais do humor mobilizou até os leitores do tablóide semanal. Na sessão “Cartas” da edição de janeiro de 1970, opiniões sentimentais davam densidade às polêmicas. “A intelectualidade pequeno-burguesa tem n’O Pasquim o seu órgão oficial e a coisa tende a se firmar como tal.
Com o tempo, O Pasquim irá não somente refletir normas, como também ditar normas, e isso é muito sério. É preciso que vocês saibam sempre o que estão fazendo e até onde devem ir. Devem procurar isolar também a intelectualidade festiva, que procura fazer do jornal um oásis de frescura”, provocou um leitor paulista. Outro, também de São Paulo, demonstrava desdém pelos dois lados contendores: “O sujo falando do mal lavado. Pior que o Nelson Rodrigues só O Pasquim. Pois se o que o sr. Nelson Rodrigues escreve não tem conteúdo, pelo menos escreve português certo por linhas tortas.
O Pasquim, além de apresentar aberrações em português, não tem conteúdo”. O difícil é saber se as cartas eram reais ou inventadas pela própria equipe do jornal.Em 1972, um drama pessoal colocou os pasquinianos e Nelson Rodrigues do mesmo lado da trincheira. Julgado por atos contra a Segurança Nacional, Nelson Rodrigues Filho foi condenado a mais de 70 anos de prisão.
Assim o cronista, que nunca escondera seu apoio ao regime, viu-se defendendo a anistia e amargou a pavorosa verdade de que seu nome e sangue, Nelsinho, fora torturado nos cárceres da ditadura. Em carta publicada no Jornal do Brasil em meados de 1979, Nelson Rodrigues dirigiu-se diretamente ao presidente da República, João Batista Figueiredo (1918-1999), num tom que misturava lirismo e cáustica ironia sobre a clandestinidade, a prisão e a tortura do filho, e pediu a anistia nestes termos: “Ora, um presidente não pode passar por um amanuense. Há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de uma misericórdia, a décima parte de um perdão não tem sentido. Imagine o preso chegando à boca da cena para anunciar: – ‘Senhoras e senhores, comunico que fui quase anistiado’”.
Para O Pasquim, que era considerado o jornal dos presos políticos e exilados (muitas vezes entrevistados na prisão ou no exílio), a luta era diferente: anistia sim, mas não para os dois lados. Na segunda semana de setembro daquele ano, publicaram sua posição definitiva: “Um jornal a favor dos que são contra”. Na mesma edição, além de charges que denunciavam os rumos do projeto governamental, na sessão “Dicas”, Ziraldo apresentou uma concepção de anistia “Anti-Nelson Rodrigues”: “Anistia não é troca. Queremos anistia ampla, geral e irrestrita, mas não recíproca. Lutar por anistia, querer a anistia não é ter bom coração. É um ato político.
Quem mata nos cárceres pessoas indefesas e amarradas não pode ser anistiado”. A comparação dos dois textos deixa claro que, apesar de sua trágica situação, Nelson mantinha-se fiel ao tom irônico de suas crônicas. Enquanto isso, até críticas internas reconheciam que o jornal e seus articulistas, depois de dez anos, estavam se tornando muito sérios, pouco criativos e mesmo mal-humorados. Com a ditadura chegando ao fim, as coisas haviam mudado muito. Ficou a lição de que a História do Brasil tinha sido muito mais complexa do que as guerras humorísticas. Na verdade, tinha sido mais dolorosa, como se obedecesse a uma espécie de lógica do pior. Algo como sugeriu o filósofo Clément Rosset, citando Auguste Comte: “Sejamos felizes, tudo vai mal”.Elio Chaves Flores é professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor da tese “República às Avessas: narradores do cômico, cultura política e coisa pública no Brasil contemporâneo (1930-1993)”, UFF, 2002.
Saiba Mais - Bibliografia:
BRAGA, José Luiz. O Pasquim e os Anos 70: mais pra epa que pra oba. Brasília: Editora UnB, 1991.
CASTRO, Rui. O Anjo Pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Edusp, 2003.
RODRIGUES, Nelson. O Reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


Mudanças climáticas colocam em perigo tesouros arqueológicos



PARIS (AFP) - A desertificação, o degelo, o aumento das chuvas torrenciais e dos furacões como consequência das mudanças climáticas podem destruir diversos tesouros arqueológicos, como templos maias, alertaram especialistas.


Múmias decompostas na Sibéria, pirâmides enterradas na areia no Sudão, templos maias que implodem: as mudanças climáticas podem destruir vários tesouros arqueológicos, mas também podem revelar novas decobertas, como "Oetzi", guerreiro da Idade da Pedra encontrado em 1991 em uma geleira nos Alpes.
O degelo, por exemplo, ameaça vestígios de kurgans, tumbas da época dos Escitas, na Ásia Central, garantiu Henri-Paul Francfort, que chefia uma missão francesa nesta região para estudar os restos desta civilização nômade nas montanhas de Altai, na Sibéria.
"O permafrost, camada de terra constantemente gelada que os conservou até agora, derrete e ameaça decompor os corpos mumificados, tatuados, enterrados com cavalos sacrificados, peles, objetos de madeira, vestuário", explicou este especialista.
"Se não nos anteciparmos, logo será muito tarde", alertou o arqueólogo, que confirmou um degelo muito importante no Ártico em 2010. O aquecimento, entretanto, pode ter o efeito contrário. No Tirol italiano, "é, sem dúvida, a retração de uma geleira que permitiu descobrir um dia o Oetzi, um guerreiro de 5.300 anos atrás. O derretimento das geleiras, especialmente na Noruega, frequentemente traz à tona outros vestígios", justificou.
Outro motivo de inquietação é o aumento do nível dos mares. Segundo os últimos dados dos cientistas, o nível da água subirá um metro até 2100, ameaçando regiões costeiras inteiras.
"A elevação das águas em certas ilhas do Pacífico provocará inevitavelmente a destruição dessas zonas costeiras. Na Tanzânia, a erosão marítima destruiu um muro do forte de Kilma, construído pelos portugueses em 1505", relatou Francfort. Em Bangladesh, a cidade de Panam-Sonargaon, centro do reino de Bengala do século XV ao XIX e um dos 100 locais ameaçados pela Unesco, é frequentemente inundada pela elevação do nível das águas.
A multiplicação de fenômenos climáticos extremos, "especialmente os ciclones com cargas de água excepcionais que caem em tempo recorde", preocupa também os arqueólogos, segundo Dominique Michelet, especialista francês em arqueologia da América.
Michelet citou os casos de Chan Chan, do antigo reino chimú, e a maior cidade da América pré-colombiana (Peru), castigada pelas inundações provocadas pelo fenômeno El Niño, e o do templo maia de Tabasqueno (México), destruído pelos furacões Opalo e Rozana em 1995, mas restaurado posteriormente. "Os arqueólogos estabilizaram o templo principal, mas os edifícios encheram de água e implodiram", explicou.
Vincent Charpentier, no Instituto Francês de Pesquisas Arqueológicas Preventivas (INRAP), especialista em zonas costeiras, confirmou esta ameaça. "No sultanato de Omã, os ciclones Gonu, em 2007, e Phet, no verão passado (do hemisfério norte), enterraram na areia locais de 5.000 a 6.000 anos antes de nossa era", contou. A areia é um dos piores inimigos dos vestígios antigos, especialmente nos desertos. No Sudão, as dunas que rodeavam a cidade de Meroe, capital do reino de Nubia (do século III a.C ao IV d.C), atacaram as pirâmides e as enterraram.
Michelet jugou "indispensável um trabalho de alerta que deve ir além de um inventário dos locais ameaçados catalogado pela Unesco".


sábado, 4 de dezembro de 2010

De volta a 1967


De volta a 67, é um documentário aborda a final do conturbado III Festival da Record.


Quase 43 anos depois daquela noite de 30 de outubro de 1967, é curioso como a final do III Festival da Record ainda repercute na cultura brasileira. O documentário “Uma noite em 67” de Renato Terra e Rodrigo Calil, investiga o que estava por trás da competição entre as seis músicas finalistas da competição, ocorrida no fervor da ditadura militar no país. Para Nelson Motta, crítico musical e jornalista entrevistado no filme, “é naquele momento que explode o tropicalismo, que racha a MPB, que Caetano e Gil se tornam ídolos instantâneos, que se confrontam as diversas correntes musicais e políticas da época”.
Naquele momento, “Ponteio” (Edu Lobo), “Roda Viva” (Chico Buarque), “Domingo no Parque” (Gilberto Gil), “Alegria, alegria” (Caetano Veloso), “Maria, Carnaval e Cinzas” (Roberto Carlos) e “Beto Bom de Bola” (Sérgio Ricardo) representavam os embates políticos que eram travados na cena cultural, entre a juventude engajada, a liberação dos costumes e a despolitização acentuada com a consolidação da cultura de massas.
Era música “jovem” e a música “brasileira”. A questão era: porque não uma “música jovem brasileira”?Com um formato simples - entrevistas e imagens de arquivo - o documentário acerta ao ter uma proposta objetiva: retratar um acontecimento dentro de seu contexto histórico.
O diretor Ricardo Calil lembra o conselho de João Moreira Salles, produtor do filme pela Videofilmes : "se você quer fazer um filme sobre os Correios, você faz o filme sobre uma carta".Graças à parceria com a Record Entrenimento, o filme traz cenas das entrevistas nos bastidores e as apresentações na íntegra e remasterizadas, transformando a sala de cinema no teatro Record daquela noite.
É de se observar, no entanto, que apesar daquele festival envolver nomes como a apresentadora Cidinha Campos, a cantora Maria Medalha (intérprete junto a Edu Lobo na música vencedora "Ponteio"), Elis Regina e Nara Leão - que, embora não tenham se apresentado naquela final, foram importantes nomes da música brasileira-, nenhuma mulher é entrevistada no filme.
O filme leva o espectador de volta a década de 1960, quandoa Guerra Fria trazia o embate entre o modelo capitalista e o socialista e, acreditando-se próxima a um governo de esquerda, as bandeiras da juventude ganhavam ares de “revolução”. A chegada da ditadura militar em 64 foi um balde de água fria para os militantes que depositaram suas esperanças em ver o “povo” no poder.
Por um lado, a repressão do governo fez calar aqueles que atrapalhavam os interesses do regime e, por outro, possibilitou a consolidação no país de uma indústria cultural nos moldes norte-americanos.
Enquanto Roberto Carlos e a Jovem Guarda embalavam as tardes de domingo de grande parte da juventude daquela época, artistas considerados engajados, como Geraldo Vandré, Chico Buarque e Edu Lobo, intensificavam o processo de nacionalização e politização na chamada música popular.
Porém, se alguns consideravam qualquer influência cultural estrangeira uma ameaça à resistência ao regime militas, os baianos mostraram no Rio de Janeiro que a sociedade poderia ser um pouco mais complexa, misturando berimbau com guitarras elétricas e propondo um estilo musical que deu novos rumos à música brasileira naquele momento.
Sem grandes pretensões de ser um marco “político, musical, histórico, transcendental”, segundo o diretor da Record Paulinho Machado de Carvalho, e tomar a proporção que tomou, os festivais tinham naquela época um papel semelhante ao da novela nos dias de hoje. Com a chegada da televisão no país, o conteúdo do rádio começava a migrar para o formato audiovisual e os festivais se tornaram importantes vitrines para músicos como Elis Regina, Jair Rodrigues, Tim Maia, Nara Leão, entre muitos outros.
No filme, Paulinho Machado conta que sua preocupação era “fazer o festival dar certo, em termos de produção”, em meio a ânimos tão exaltados. Entre as pérolas do festival (e do filme), está a cena em que Sérgio Ricardo, revoltado com as vaias que o impediam de cantar, quebra o violão no palco e o atira na platéia, sendo desclassificado em seguida. As vaias tinham cadeira cativa nas apresentações.
Para a jornalista Ana Paula Sousa, da Folha de São Paulo, era um Brasil que, “calado pela ditadura, parecia disposto a vaiar quem quer que fosse, de Roberto Carlos a Caetano Veloso”. As disputas políticas em torno da música popular brasileira eram refletidas no palco e principalmente na plateia organizada, que dava ares de final de Copa do Mundo à competição.
A própria organização do festival e a seleção dos finalistas lembrava ringues de batalha entre “personagens”: Chico Buarque, o mocinho; Roberto Carlos, o galã; Edu Lobo, o politizado; Caetano e Gil, os baderneiros. Zuza Homem de Mello, técnico de som da Record no festival e consultor do filme, conta que “a plateia estava a fim de destruir as músicas de que não gostava, muitas vezes por razões políticas.
Era um tipo de fanatismo que nunca tínhamos visto em um festival”.Nos dias de hoje, sem iminência da repressão militar e com novela de sobra na televisão, ouvimos muitas vezes o discurso de que “não se faz mais política e cultura como antigamente”. No entanto, com as possibilidades de produção e circulação cultural ampliadas pelas novas tecnologias, observa-se o contrário: uma enorme proliferação de artistas independentes, por vezes não menos qualificados, realizando seus trabalhos sem espaço na mídia comercial, que ainda mantém formatos semelhantes aos de quarenta anos atrás.
É preciso atualizar também os conceitos de cultura e política para enxergar as novas formas de organização da juventude. Como propõe Gilberto Gil em entrevista no filme, é preciso “misturar as sementes para ver no que dá”.Formada em Estudos de Midia pela UFF e mestranda em "Indústrias Criativas: web, midia e artes" pela Universidade Paris VIII, Aline Carvalho é autora do livro Produção de Cultura no Brasil: Da Tropicália aos Pontos de Cultura. Documentário aborda a final do conturbado III Festival da Record.