Quem sou eu

Minha foto
Sou professor de História e Música

camaradas

Marcadores

1930 (2) absolutismo (1) ações (6) África (1) Alemanha (6) alienação (8) Alsácia-Lorena (1) amor (3) analfabeto (1) Anarquismo (3) antiguidade (3) arte (2) Ásia (1) banditismo (2) Batuque cozinha (1) beijo (1) beleza (2) bolcheviques (3) Brasil (13) Bruxaria (1) Café (1) cangaço (1) Cão (1) Capital (3) carvão (1) castelo (1) cavaleiro (1) caverna (2) cidade (5) Cimitério (1) cinema (3) civilização (2) Coca-Cola (2) colônia (1) comportamento (12) Comunicação (3) concurso (1) consumo (6) Cultura (1) cultura africana (1) czar (3) danton (1) Deuses (1) digital men (1) direitos (5) Ditadura (4) educação (3) Egito (1) elite (2) escravidão (3) Espectreman (1) Estados Unidos (7) exploração (1) fascismo (7) FEB (1) feitor (1) Festival (1) Filme (1) França (3) Futebol (1) geopolítica (3) globalização (3) guerra (2) Guerra civil Espanhola (1) GUERRA FRIA (1) guilhotina (1) hino (1) História (14) Hitler (6) imigrantes (1) imperialismo (3) Inglaterra (2) interesse (2) Itália (1) jacobinos (1) Japão (1) Jean Piaget (1) Jogos (1) Jornal (1) Juazeiro (1) Lampião (1) liberal (1) lixo (2) Maia (1) manifesto (1) manipulação (5) máquina (3) maravilha (1) mina (2) Moda (2) moderno (3) monstro (1) Morte (1) mulher (1) música (1) Mùsica (1) navio (2) nordeste (1) Pasquim (1) Pele (1) petróleo (1) politíco (5) portugal (2) Pré História (2) Primeira Guerra (2) programa (2) Quadrinhos (1) rádio (2) Refrigerante (1) Religião (1) revista (1) Revolta de 1932 (1) revolução (7) Rio de Janeiro (2) Rio Nilo (1) Salazar (1) Salvador Dalí (1) São Paulo (3) Secreto (1) segunda guerra (4) senhor feudal (1) ser humano (2) seriado (1) servo (1) socialismo (4) sociedade (16) sonho (5) surreal (1) Tatuagem (1) Telegramas (1) the crofft supershow (1) Tiradentes (1) trabalhadores (3) tráfico (1) triunfo da vontade (2) ultraseven (1) URSS (3) veja (1) violência (7) virtual (1) Walt Disney (2) WikiLeaks (1)

Postagens populares

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Quem tem boca vai à forca


Tiradentes era um orador incansável: dos prostíbulos às pousadas de beira de estrada, fez da palavra sua grande arma. Que ele arrancava dentes, é fácil de se imaginar. Mas a habilidade de Joaquim José da Silva Xavier que realmente causava arrepios nas autoridades portuguesas era outra: ele falava pelos cotovelos. E falava bem.
Antes de se tornar o “mártir da Independência”, Tiradentes foi um exímio comunicador: persuasivo, incansável e – talvez seu traço mais relevante – sem preconceito de público. Onde houvesse concentração de gente e pontos de encontro propícios à conversa, lá estava ele.
Em 1789, João Rodrigues, dono de uma estalagem em Varginha, no caminho que ligava os centros mineradores ao Rio de Janeiro, foi chamado a prestar depoimento no inquérito sobre a Inconfidência Mineira. Motivo: tempos antes ele hospedara o alferes Silva Xavier. A hospedagem em si não lhe teria causado maiores problemas, se o famigerado falastrão não tivesse começado a expor, de modo exaltado, seu descontentamento político.
O estalajadeiro contou aos juízes uma conversa que tivera com outro hóspede após a passagem de Tiradentes: “Vossa Mercê não sabe que há por cá valentões que se querem levantar com a terra? [...] Era um semiclérigo”. O termo usado pelo depoente não era apenas irônico, mas altamente simbólico. Ao desvendar o lado “semiclérigo” de Tiradentes, ele não só confirma que seu hóspede falava demais (como um padre em pregação), como deixa claro que o hábito de falar em tom de convencimento estava ligado à atuação dos representantes da Igreja.
Tanto a tradição lusitana quanto a história da capitania do ouro comprovam o desempenho de religiosos na fomentação de motins junto à gente miúda, como na Restauração Portuguesa de 1640, quando Portugal se separou da Espanha após 60 anos da União Ibérica, e nos Furores Sertanejos de 1736, uma série de motins deflagrados contra a cobrança do imposto da capitação, no norte de Minas. Nessas ocasiões, os padres foram duplamente importantes: souberam alimentar o debate com discursos de convencimento e ajudaram a transportar as insatisfações populares (geralmente limitadas ao âmbito oral) para o contexto da escrita.
Na sociedade colonial, os relacionamentos eram marcados pela oralidade. A troca de idéias, as polêmicas e as críticas ao governo ocorriam basicamente em conversas, que se tornavam públicas por meio de boatos e murmúrios. Nesses momentos, os religiosos, acostumados ao púlpito, lançavam mão de sua oratória. E Tiradentes, ao agir como um “semiclérigo”, ecoava seu discurso com a mesma eficácia.
Tiradentes trafegava com desenvoltura pelo submundo da Colônia, em ambientes especialmente favoráveis à divulgação de propostas ousadas. Tavernas e prostíbulos eram os locais por excelência para tramas envolvendo fugas de escravos, negociatas ilícitas e ações subversivas. Afinal, ali se reuniam todas as gentes: homens brancos, escravos, libertos, vadios e militares, principalmente os de baixa patente.
No inquérito da Inconfidência Mineira, uma testemunha afirmou ser público que o alferes “andava falando por tavernas e quartéis”. Outra, que ele “pretendia excitar uma sedição e motim nesta capitania, chegando o seu desaforo a andar convidando sócios até pelas tavernas”. Uma terceira, que andara “por casa de várias meretrizes, a prometer prêmios para o futuro, quando se formasse nesta terra uma república”.
Três meretrizes a quem Tiradentes teria feito promessas chegaram a depor no inquérito. Eram mãe e duas filhas, identificadas, preconceituosamente, como “pilatas” – segundo o historiador Tarquínio J. B. de Oliveira, o termo remetia a pia de água benta, “onde todos botam a mão”. As mulheres pediram a Joaquim José que ajudasse um irmão das duas meninas a “sentar praça de soldado na tropa paga”. O conjurado teria lhes respondido que “deixassem estar, que brevemente se lhe assentaria praça, porque ele, dito alferes, estava para ser um grande homem”.
Mas a “pregação” de Tiradentes não se limitou ao submundo. Transitava pelas ruas de Vila Rica (atual Ouro Preto), visitava residências de sujeitos proeminentes e repartições públicas. Freqüentou, especialmente, o primeiro piso da residência de João Rodrigues de Macedo, onde funcionava um cartório. Macedo era um poderoso comerciante e arrecadador de impostos. Por sua casa passava diariamente um grande número de pessoas, por conta de pendências fiscais ou para o acerto de taxas do comércio.
Era a mais imponente construção civil da cidade, um ponto de encontro e comunicação que atraía grandes comerciantes, mineradores e “homens bons” da região. Tudo indica que naquela casa ocorreram encontros secretos entre alguns inconfidentes. Mas muitos tópicos da opinião pública eram também discutidos às claras, sem nenhuma reserva ou sigilo, e por pessoas alheias ao movimento rebelde.
O valor da derrama (cobrança de impostos atrasados relativos à exploração do ouro) circulou de boca em boca por meio dos cálculos de Vicente Vieira da Mota, funcionário do cartório. Grande parte das informações dadas pelo tenente-coronel Basílio de Brito Malheiro, um dos denunciantes da conjuração, foi recolhida no local. E Tiradentes pronunciou ali alguns de seus discursos políticos para quem quisesse ouvir.A complexidade do espaço urbano de Minas era suficientemente grande para criar diferenciações simbólicas entre os lugares de convivência.
Isto fica claro em relação a tavernas e prostíbulos, sobre os quais pairava o estereótipo: seus freqüentadores eram tidos como pessoas de menor qualidade, desregradas ou criminosas. E enquanto a casa do cartório reunia homens poderosos e benquistos pela sociedade, a ponte que a margeia era vista com reserva. Para Basílio de Brito Malheiro, as pessoas que ali conversavam não possuíam boas qualidades, “porque na dita ponte não costumava ajuntar-se gente séria”.
Tiradentes alugava casa próxima aos dois pontos de encontro.Andou também pelos pousos e estradas do Caminho do Rio (ou Caminho Novo). Este trajeto, que ligava as vilas mineiras ao litoral carioca, dois dos principais pólos econômicos da América portuguesa, era a rota terrestre mais transitada da Colônia. Notícias e informações circulavam por seus caminhos, refazendo o amplo circuito de comunicação dos viandantes.
Tão logo soube das desordens em Minas, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa advertiu para o perigo de que, “pela vizinhança e relação contínua de comércio, se possa comunicar [de Minas para o Rio] este tão grande mal”. As palavras de Tiradentes parecem ter sido ali transmitidas e retransmitidas como tentáculos. A impressão que se tem pela leitura do processo contra os inconfidentes é que seria impossível uma só pessoa ter conversado tanto tempo, com tantos interlocutores, em tantos lugares diferentes.
São pousos, fazendas, estalagens, ranchos de abrigo do sol, registros fiscais e muitos outros locais a servir de cenário para as confabulações do alferes. Uma testemunha afirmou ter ouvido dizer que o militar “havia falado a quase todos os moradores da estrada do Rio de Janeiro, como era constante”. Outro contemporâneo soube que Tiradentes, enquanto viajava para a capital da Colônia, “tomou a sua conta ir semeando alguns discursos suasórios [persuasivos] das conveniências deste país”. O alferes comunicava publicamente suas indignações e sua inquietação, “alargando-se e convidando algumas pessoas, a quem persuadia dos seus intentos, e a quem se encaminhavam aqueles discursos”.
Essas práticas motivaram intensos burburinhos. Uma voz pública passou a veicular “as notícias gerais das liberdades e despropósitos que o mencionado alferes viera espalhando desde o Rio de Janeiro – onde tinha residido por largos tempos – por toda a estrada”. A elaboração anônima dos boatos se encarregou de fazer chegar suas mensagens a lugares por onde ele não conseguira passar. Um “ouvir dizer” irrefreável espalhou-se pelos caminhos.Às margens das estradas, as estalagens e pousadas constituíam um meio-termo entre os ambientes rurais e urbanos da Colônia. Viviam da pujança comercial que interligava as regiões do Brasil, abrigando toda sorte de gente. Tropeiros, caixeiros e negociantes constituíam a clientela principal, mas nelas também pernoitavam pessoas alheias ao comércio: funcionários públicos, fazendeiros, mineradores, militares ou simples viandantes.
Pobres e ricos se esbarravam no mesmo estabelecimento, embora o preço da estada e da alimentação fosse sacrificante para os primeiros. Sabe-se que em uma de suas viagens Tiradentes esteve acompanhado de Antônio de Oliveira Lopes, um paupérrimo medidor de terras que não podia pagar sua própria hospedagem. Joaquim José supria as contas do companheiro, bebendo com ele um cálice de vinho ou aguardente e aproveitando a ocasião para praguejar contra a miséria de Minas e a ladroagem dos governadores. Na mesma estalagem hospedava-se ainda um moço do Serro não identificado, miserável e “muito mal tratado, porque conduzia um saco às costas e vinha descalço”.
Na cidade ou na estrada, no submundo ou entre os poderosos, a trajetória de Tiradentes está intimamente ligada à força da oralidade na sociedade colonial. O que nos coloca diante de uma questão atualíssima: ainda hoje uma nação constituída, em grande parte, de analfabetos ou semi-analfabetos, o Brasil continua a ter sua história construída por meio de falas e murmúrios. Para melhor nos enxergarmos como nação, convém apurar os ouvidos.

Tarcísio de Souza Gaspar é professor substituto da Universidade Federal de Viçosa, historiador da Prefeitura Municipal de Ouro Preto e autor da dissertação “Palavras no chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII” (Rio de Janeiro: UFF, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:
FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope – história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
NEVES, Guilherme Pereira das. “Murmuração”. In: Ronaldo Vainfas (dir). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001; p. 416-7.
RAMOS, Donald. “A voz popular e a cultura popular no Brasil do século XVIIII”. In: Maria Beatriz Nizza da Silva (org.) Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, p. 137-155.
SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito: aspectos da história mineira no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2006.


Nenhum comentário:

Postar um comentário